Meu marido atravessou a rua, abriu o carro e guardou as
compras que havia feito. Ia dar a partida quando observou que uma mulher, num
carro estacionado próximo ao dele, mexia nervosamente a bolsa e olhava para o
interior do carro dela. Depois, abriu o porta-malas e parecia falar sozinha.
Ele dirigiu-se a ela e perguntou se estava com algum problema, se poderia
ajudar.
- Perdi as chaves do carro – disse ela.
Ele foi ajudá-la e, pelo menos, sabiam que a chave
só poderia estar por ali porque a porta do carro havia sido aberta. Mas afinal,
a chave tinha caído? Não, ela deixara a chave em um lugar seguro para não
esquecê-la e poder arrumar as compras. E por que não tinha inserido a chave na
ignição? Ah, vai que aparece um assaltante...
Procura vai, procura vem, a chave foi encontrada. A
mulher agradeceu e meu marido voltou ao carro dele. Sentou-se ao volante e
quando foi dar a partida percebeu: onde está a chave do carro? Saiu rapidamente
e fez sinal para a mulher.
- Por favor, pare o carro!
- O que aconteceu?
- Perdi as chaves do meu carro.
Quando ele me contou essa história é claro que ri um
bocado! E pensei em mim mesma que perco os óculos quando eles estão na cabeça;
compro pão e saio sem pagar; já cheguei ao cúmulo de provar roupas em uma loja
e quase sair com um vestido pendurado no braço. Quase... não fosse a
interferência gentil e desconfiada da vendedora. Nem perdi tempo dando
explicações: ela tinha uns vinte e poucos anos. Ainda não sabia o que era isso.
Depois dos quarenta percebi uma degenerescência gradual
da minha memória. Usei essa palavra grandalhona aí por vaidade mesmo, pelo prazer
de tê-la agarrado antes que entrasse no sumidouro das palavras perdidas. Sabe
como é isso? Estou conversando ou escrevendo e eis que engasgo, fico muda e a
palavra seguinte não sai. Faço uma varredura mental, palavras começando com a
letra b, c, g; não, acho que começa com a letra s, sa, se, si ,so... Soluço! Ai
que alívio!
Para a escrita é menos pior. Afinal, na era do Google, basta fazer uma pausa e sair em
busca do esquecido. Pesquisando com calma, o assunto é liquidado; isto é, se a
gente tiver uma dica porque agora mesmo estou tentando me lembrar o nome de um
filme em que a atriz principal descobre que tem o “Mal de Alzheimer” e não
estou conseguindo. Espera um pouquinho que vou ao Google. Sei que é um filme coreano e ganhou um prêmio no Festival De
Cannes. Achei! Poesia (Shi, 2010), do
diretor Lee Chang-dong. A atriz, Yoon Jeong-hee, tem uma atuação valiosa e...
Bem, meu assunto é outro, mas viram como o Google
é fenomenal?
Mas a tal da falta de memória atrapalha demais! Quantas
vezes encontro alguém que me cumprimenta efusivamente e eu acompanho com
atenção todas as falas desse meu interlocutor ainda desconhecido pra mim, olho
atentamente para o rosto da criatura e nada! Branco total! Ainda mais
embaraçoso é se estou com alguém da minha família e quero fazer as
apresentações. Sei que conheço você, sei que trabalha em tal lugar. Mas qual é
o seu nome, seu nome? A pessoa vai embora e eu me sinto frustrada. Pode ser, pode
ser, daí a alguns dias, se eu me esforçar muito, que o nome dela surja na minha mente. Será tarde e
Inês morta!
Já aceitei pedidos de amizade pelo Facebook em que não fazia a mínima ideia de quem era o dito cujo.
Depois, fuçando as informações e fotografias (ainda bem) me lembrava do “novo”
amigo. Claro, nunca novo, na maior parte das vezes! As imagens enfeitadas pelos textos nas redes
sociais são uma apoteose para mim!
Acredita que eu já saí para ir à igreja e tomei o
caminho do meu local de trabalho? E ainda precisei relembrar, com calma, para
onde ia realmente? Marquei horário com o dentista e fui ao oculista? Forneci o
número do celular da minha filha em um consultório médico, em vez do meu? E
somente descobri o engano quando a secretária ligou para minha filha para
confirmar minha consulta. E minha filha (menina esperta!) confirmou porque logo
percebeu que eu havia cometido mais um deslize por culpa da minha memória, ou
melhor, da minha falta de memória.
Preocupada, até fui a um neurologista. Ele realizou vários
testes comigo e disse que eu estou bem. “Precisamos esquecer para lembrar”,
foram essas as palavras dele. Pelo sim,
pelo não, iniciei uma batalha para manter meu cérebro vivo. Faço sudoku, palavras cruzadas, jogo da
memória, exercícios de lógica, medito, pratico ioga e leio, leio muito!
Leio com atenção!
Mas enfim, naquele mesmo dia em que meu marido me
contou suas aventuras com as chaves dos carros, fomos ao shopping. Depois de
estacionar, ele me pediu para gravar o local onde estávamos deixando o carro.
Olhei bem e registrei: Setor F6, F de Fátima. Saí caminhando, mas resolvi
voltar alguns passos; abri a bolsa e bati uma foto do local. Prevenido, morreu de
velho!
P.S.: sabia que estava esquecendo alguma coisa: a música! Não me lembro mais qual é...
P.S.: sabia que estava esquecendo alguma coisa: a música! Não me lembro mais qual é...
Tomo a liberdade de publicar o comentário do meu amigo Sérgio Remaclo:
ResponderExcluir"Querida Fátima,
As situações são, além de hilárias, muito comuns, principalmente se levarmos em consideração esse mundo globalizado, onde as atenções estão voltadas para "n" coisas ao mesmo tempo. Haja cérebro, memória e, também, coração.
Hoje existe uma preocupação na área da saúde mental com essa multiplicidade simultânea dos focos de atenção dos jovens: isso não é bom para o cérebro e também para as boas convivências.
Vivemos num mundo da multiperspectivação e, parafraseando Jung, o "processo de individuação" (fundamental para a consciência/construção do "eu") está indo para o beleléu. E aí, viva a cultura de massas, ou melhor, a massificação de comportamentos.
Adorei o teu texto!
Beijão no teu coração,
Serginho"
Serginho,
ResponderExcluirSeus comentário são sempre pertinentes e me orgulho em tê-lo como leitor e amigo.
Brinde-me sempre! Beijão.
Fátima
Segue comentário de outro amigo: Henrique Thieme.(via e-mail)
ResponderExcluirFátima,
"Nem me fala... faz tempo que também faço dessas! O Pior é quando reencontro alguém que não via há algum tempo e me chamam pelo nome e eu não sei o dela...
Essa semana foi uma amiga de faculdade; só lembrei depois que disse tchau.
Bjs e uma ótima semana.
PS: tinha acabado de ler no seu blog quando abri o email. Queria ter filmado a cena!"
Henrique Querido,
ResponderExcluirA cena das chaves perdidas deve ter sido hilária mesmo! Quando Pedro me contou até pensei que fosse "graça" dele.
Mas nós sobreviveremos a essa nova fase. Será uma fase?
Beijos saudosos!
você é incrível!!!! kkkkk bjs
ResponderExcluirLane