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quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Pra São Jorge



Vou acender velas para São Jorge
A ele eu quero agradecer
E vou plantar comigo-ninguém-pode
Para que o mal não possa então vencer

Olho grande em mim não pega
Não pega não
Não pega em quem tem fé
No coração

Ogum com sua espada
Sua capa encarnada
Me dá sempre proteção
Quem vai pela boa estrada
No fim dessa caminhada
Encontra em Deus perdão
Zeca Pagodinho

Era para ser uma reunião de família. Tudo bem, ainda foi uma reunião de família, mas você sabe como é, tenho um irmão e duas irmãs. Somos quatro, então juntou marido, mulher, filho, primo, sogro, sogra, cunhado, o escambau. A tal reunião que seria na nossa sala de estar acabou sendo no salão de festas do prédio onde moro. E o salão é grande pra caramba!

Bem, vou contar tudo o que aconteceu. Maldita hora em que o Henrique, meu cunhado, casado com a Marília, comentou que sairia mais cedo porque iria à igreja. Pra quê? Minha mãe, “católica apostólica romana, a verdadeira igreja do mundo, santa e una” bem que poderia ter ficado calada, mas emendou logo: “esses evangélicos... é um tal de orar, é um tal de querer convencer a gente de ir à igreja deles e entregam aqueles papeizinhos com oração...”.

Henrique, calmamente, explicou a ela que os evangélicos não entregam papeizinhos, etc e etc. Mas a velhinha é insolente e ficou resmungando que não queria nem saber e nem entendia como é que Marília frequentava a tal igreja. “Era tão católica, minha filha. Não era muito praticante, mas rezava, ia à missa aos domingos...”.

Claro que mais alguém tinha que interferir, principalmente porque alguns já tinham tomado uma cervejinha e estavam meio alegres. Apareceu um espírita, nem sei quem era, a querer dar aula sobre mediunidade, a recomendar a leitura de Allan Kardec, “O Livro dos Espíritos” e foi tratando de dar o endereço do Centro Espírita “bem pertinho lá de casa,” Eu sabia que ia dar confusão. Isso de discutir religião, política e futebol nunca deu certo.

Não deu outra. Minha mãe respirou fundo e pediu logo que os netos se afastassem para não serem maculados pela conversa imprópria e a vizinha (intrometida, não tinha nada que estar lá) foi logo falando que não contava a todo mundo, mas era mãe de santo num terreiro muito sério e só de olhar para minha irmã Clara, já sabia que ela era filha de Ogum e Iansã.  Viu logo que ela havia herdado as características de Iansã: era uma guerreira, impaciente e muito sensual. E por ser filha de Ogum, também tinha temperamento muito forte, dominador e impulsivo. Perguntou logo: “você não é briguenta e demora a perdoar os outros?” Cara, minha irmã converteu-se ao judaísmo depois que se casou com Benjamim. Antes do casamento, era católica e, logo agora, a vizinha vinha com esse papo. Ainda bem que Clara é da paz e se fez de desentendida. “Olha, eu sou judia, não entendo disso e leio a Torá.” Benjamim passou as mãos na barba comprida e puxou logo minha irmã dali. Ainda bem. A criatura ainda foi atrás deles falando de pombas-gira e despachos do bem para Iemanjá protegê-los, mas os dois saíram de fininho.

Eu pensei que aquilo fosse o final de tudo, mas mulher é fogo! Não é que a Luisa disse que bom mesmo era ser budista? Puxa vida, tanto tempo casada comigo e ainda não aprendeu a calar a boca! “Ah minha filha, eu já atingi o nirvana, tenho disciplina mental e creio na lei do carma. Pensa direitinho se vale a pena ser macumbeira porque suas ações de agora vão determinar sua condição na vida futura”. Dona Lola, a tal vizinha, ficou vermelha e replicou: “macumbeira nada, macumbeira nada". Eu pratico o candomblé, é bem diferente! O nosso Deus é o mesmo da igreja católica!” Ainda bem que minha mãe é meio surda e não ouviu isso. Do contrário, seria um deus-nos-acuda e eu seria obrigado a ouvir resmungos por bastante tempo! Acho até que seria deserdado e ex-comungado por ter convidado a Dona Lola.

Nessas alturas, meu irmão, eu tive que entrar na conversa que já virava briga. Expliquei que era melhor a gente mudar de assunto, que estávamos comemorando meu aniversário, era dia de Todos os Santos e que fôssemos comer o bolo de chocolate que estava delicioso.

Acredite, foi a salvação. Chamei Luisa para servir o bolo e cantamos “parabéns pra você” num clima meio pesado, uns olhando de esguelha para os outros, mas acabei a festa! Cara, sou ateu graças a Deus! E depois dessa, aí é que concluí que tenho razão. Continuo indo ao templo budista com a Luisa, mas somente para agrada-la. Aliás, eu agrado todo mundo: vou à missa de vez quando; tomo uns passes; recebo o tal do johrei; tudo em nome da santa paz do senhor! Saravá!

Vamos rezar, ops, cantar com Zeca Pagodinho?

Fonte da imagem: Blog do Contra

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Lama

...
Não me interessa mais ninguém
Se o meu passado foi lama
Hoje quem me difama
Viveu na lama também
...
Quem foste tu?
Quem és tu?
Não és nada!
Se na vida fui errada,
Tu foste errado também
Se eu errei, se pequei,
Não importa!
...
Maria Bethânia



10h00 - na copa da empresa: Carol, você soube da última? Não! Pois se prepare: a Laurinha tá de caso com o Renato Queiroz. Como é que é? Com nosso chefinho, lindo e maravilhoso? O evangélico, que sabe todos os salmos de cor e salteado? Ah... brincadeira... Nada disso, querida! É vero, veríssimo. Quem me contou eu não posso falar pra você, mas a fonte é segura. E tem mais, o cara já era famoso pelas galinhagens dele antes de assumir o cargo de gerente aqui. E a mulher dele já sabe? Parece que sim, na verdade ela descobriu pelas ligações dele feitas no celular. Foi a maior confusão! Percebeu que ele tá sem aliança? Não, nem notei, mas tô de queixo caído. Aliás, ele bem que tem cara de sonso mesmo. E pensando melhor, eu já tinha visto ele arrastar as asas pro lado da Laurinha. E ela toda sorridente e tal. Por isso que foi nomeada supervisora tão rápido. Entendi tudo! Ainda bem que fui agraciada com uma filha que é uma santa. Todo dia eu agradeço pela minha Babi. Quieta, não namora, vai á faculdade, sai com as amigas e pronto. Ainda é trainee na empresa, mas não dá pra ninguém nem fica de casinho com colega. (Suspiro) Não sei mais o que falta acontecer aqui.

11h00 - no salão de beleza: Oi querida, tá boa? Tô e você? Tudo em paz, mas confusão mesmo tá na casa da Glória. O que foi? Não é que a Suzana tá grávida! A Suzana!? Ah Veroca, não! Aquela menina me enganou direitinho. Aliás, enganou todo mundo. Tão estudiosa, recatada, acho até que só podia sair com o namorado se fosse na companhia dos irmãos. É o fim dos tempos! Na minha época isso já acontecia, mas era mais difícil  porque a lei era a seguinte: comeu, casou. Então já viu, né? Pelo menos os garotos pensavam duas vezes antes de fazer besteira, ou pelo menos, pensavam com a cabeça de cima e não com a de baixo. Pois é... complicado, e ela disse que não quer casar coisa nenhuma. Ou aborta ou cria o filho na casa dos pais. E vai continuar a estudar. Na escola tá outro rebu. Imagina, as freiras não sabem como vão explicar aos demais pais o que aconteceu com uma aluna delas. E o pai? Quase infartou. Mas enfim, vamos ver o que vai dar. Eu sempre digo: quem tiver suas cabritas, que prendam. Meus meninos também estão soltos por aí, mas nem pensar em sacrificar o futuro deles por causa dessas sirigaitas doidas. Parece que vivem no cio!

13h30 - no restaurante: Mauro, eu te chamei pra gente conversar porque tenho algo difícil pra falar. Sei que você vai ficar transtornado, mas nós precisamos resolver esse problema juntos. O que foi, Bete? Se você estiver me traindo, acho melhor a gente parar por aqui. E não vou te dar nenhum tostão de pensão. Não tô a fim de ouvir nada disso. Acabou. Não, não, Mauro! Não tem nada a ver. Você parece que vive esperando que isso aconteça. Nossa! Eu quero falar sobre algo muito mais sério do que isso. Tá bom, então desembucha logo que eu preciso voltar a trabalhar. Vamos fechar um negócio fabuloso daqui a pouco. É o seguinte, querido: a Yasmim é garota de programa. Como é que é? Eu mato essa menina agora! Calma, Mauro. Calma! Tá todo mundo olhando pra gente! Fala baixo! Eu te chamei prum restaurante justamente pra evitar escândalo. Pense no nome da nossa família. Nós somos Barbosa de Nabuco. Pois é, Bete, nunca faltou nada pra essa menina! Onde foi que nós erramos? O que é que os outros vão dizer? Vão dizer não, Mauro, já estão dizendo! Putz, como?! Aquele jornalista, colunista, sei lá, de meia tigela, o Alexandre Simões, descobriu não sei como e está extorquindo a Yasmim. Ela não aguentou e contou pra mim. Eu tô tão nervosa que não entendi bem se ele tem fotos ou se quer dinheiro. O fato é que ela está apavorada! O que é que a gente faz? Simples: eu vou mandar apagar esse cretino, rapidinho. Deixa comigo. Não, Mauro! Basta aquele desqualificado que estuprou a Yasmim. Basta! Eu não quero carregar mais nenhuma história dessa na cabeça.

19h00 - em casa, à mesa de jantar: Babi, você não comeu nada minha filha. Coma mais um pouco de salada. Você tem estudado demais, é isso! Trabalhado demais, também! Hoje eu soube que uma colega nossa, assim da sua idade, tá de caso com nosso gerente. Às vezes até acho que você com essa sua beleza toda, devia era fazer a mesma coisa. É mais rápido e fácil. Ai minha Santa Rita de Cássia, me desculpe! Mas Babi, você tá tão pálida. O que é que há, minha filha? Tá precisando de dinheiro? Quer viajar? Quer roupa, sapato? Chega, mãe, chega! Vou contar. Tô saindo de casa. É isso aí. Vou morar com a Mariana. A gente se ama e não tá mais aguentando esse negócio de ficar se escondendo de todo mundo. Você precisa entender. A gente se ama há muito tempo, mãe... Não dá mais pra segurar essa barra sozinha... Pronto, falei!


Eis a música com Maria Bethânia:http://letras.terra.com.br/maria-bethania/47235/

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

The Logical Song


"When I was young
It seemed that life was so wonderful
A miracle, oh it was beautiful, magical
And all the birds in the trees
Well they'd be singing so happily
Oh joyfully, oh playfully watching me
But then they sent me away
To teach me how to be sensible
Logical, oh responsible, practical
And they showed me a world
Where I could be so dependable
Oh clinical, oh intellectual, cynical

There are times when all the world's sleep

The questions run too deep
For such a simple man
Won't you please, please tell me what we've learned
I know it sounds absurd
But please tell me who I am"
Supertramp


Ele foi um bebê grandão, cabeça bonita, rosto harmônico. As pessoas o admiravam. Oh que lindo... Sorriam para ele embevecidas. À medida que ia se tornando mais velho, sua beleza aumentava. Fazia sucesso na escola, tanto entre os professores como entre os colegas. Era o popular, o querido, todos queriam sua companhia. Sabido, depois veríamos que nem tanto, percebeu logo a importância da beleza, do charme, do savoir-faire.

A vida era fácil para um menino com tantos atributos e, claro, prometia o futuro mais brilhante e perfeito com o qual todos nós sonhamos. Mas ele não gostava de estudar: gostava era de caçar lagartixas, subir nos pés de goiaba, usar o estilingue, ver desenho animado, ir à praia. A escola fazia parte, mas era apenas o menor dos detalhes.

Adolescente, começou a fumar cedo, bebia uma cervejinha com os amigos, flertava sempre com a garota mais bonita. Ele faz parte das histórias do primeiro beijo de várias delas, hoje casadas, mas que o levam no coração e na memória.

Também com os amigos conheceu a maconha, experimentou outras drogas mais poderosas e foi se achando cada vez mais poderoso, também. Aos dezessete anos, casou-se. A moça esperava um bebê. Ele parecia ter pressa em ultrapassar as etapas que o mundo nos oferece em doses homeopáticas. 

Conheceu mais substâncias alucinógenas, tornou-se viciado em cocaína e bancar uma droga tão cara não é fácil, mas os amigos conseguiam pra ele: o mais bonito, o modelo fotográfico, o belo! Presença requisitada em todas as festas, simpático, gente boa demais, ainda conheceu o trabalhou para poder oferecer alguma coisa ao filho e à mulher amada. Mas as drogas o consumiam.

Um dia a família foi matéria nas páginas policiais: ele tinha furtado sons de automóveis, automóveis e motos. Foi preso. Réu primário. Foi solto. Voltou às drogas e à delinquência. Ficou mais de um ano numa cela na Bahia. Aprendeu a fazer artesanato com palitos de picolé, escrevia cartas aos pais.

Natal em casa. Ano-novo em família. Ainda conseguiu drogas, mas parecia decidido a mudar. Inscreveu-se no vestibular de Direito, saiu para um show de Raul Seixas. Estava embriagado. Ouviu-se, algum tempo depois, um recado na secretária eletrônica, a voz modificada pelo excesso de álcool.

O que se sabe é apenas o que foi contado. Agressões físicas. Correria. Um tiro no pescoço. Ainda teria dirigido, mas o corpo não resistiu. UTI. Quatro dias. Morte cerebral. Funeral em sete dias.

Tinha pressa mesmo. Viveu somente 25 anos. Para os que o conheceram e queriam bem a ele, continua o mais lindo, porém o mais ingênuo de todos. Morreu sem saber disso. Morreu pensando ser o mais poderoso.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Você

"Vocês já ouviram lá na mata a cantoria
Da passarada quando vem o amanhecer
E já escutaram o canto triste da araponga
Anunciando que na terra vai chover
Já experimentaram guabiraba bem madura
Já viram o céu quando o sol vai se esconder
E já sentiram das planícies orvalhadas
O cheiro doce das frutinhas moçambê
Pois meu amor tem um pouquinho
disso tudo
E tem na boca a cor das penas do tiê
Quando ele canta os passarinhos
ficam mudos
Sabem quem é o meu amor
Ele é você
você, você, você"
Hekel Tavares e Nair Mesquita


Difícil  escrever sobre alguém que faz toda a diferença na minha vida. Quando vi meu marido pela primeira vez, sabia que havia encontrado alguém especial. Era casada, mas meu casamento estava acabando. Ele também, há muito, não sabia o que era amar. Nós nos aproximamos aos  poucos e levamos algum tempo até concluirmos que poderíamos formar um casal.


Lembro que eram muitas as especulações, cotovelos com cotovelos, olhares maliciosos daqueles que nos conheciam. Existia entre nós uma energia que contagiava quem ficasse perto,"qualquer coisa no ar, esse desassossego..."  Mas demoramos a crer que estava acontecendo. Ele era afoito, me olhava por detrás da fumaça do cigarro, sorriso de conquistador experiente. Eu ficava assustada, queria mas não podia, pensava que era mais um flerte na vida dele. Sabia que Pedro tinha enlouquecido muitas mulheres noites afora. Eu resistia e me derretia. Sonhava, decidia, voltava atrás e o tempo ia passando. 


Um dia, dia de São Pedro de um ano do século passado, concretizamos nosso amor. E vimos que dava certo, nossas peles combinavam, o beijo era único e as estrelas piscavam, cúmplices da nossa paixão. Estamos juntos até agora. Não pensávamos em ter filhos, mas Paulinha chegou em 2004 e, se pudéssemos, mais filhos teríamos para celebrar o nosso amor.


Pedro é meu companheiro, meu amigo, meu amante, meu marido. Tenho certeza de que escrevi isso nas redes sociais, certa vez; mas não dá pra não repetir. Cada momento em que estamos juntos é perfeito. Admiramo-nos, rimos juntos, brigamos também, é claro, mas com muito respeito um pelo outro. Nossa vida é completa e ele acolheu minha filha Livia com afeto. Eu acolhi Julio, filho dele, com carinho.


O que eu peço a Deus, aos orixás, a Buda, ao universo, aos santos e a quem mais for preciso é que continuemos assim porque somente assim é que poderemos ficar juntos. Com amor.



"... sabem quem é o meu amor
Ele é você
você, você, você"


terça-feira, 18 de outubro de 2011

Flagra

"No escurinho do cinema
Chupando drops de anis
Longe de qualquer problema
Perto de um final feliz"
Rita Lee e Roberto de Carvalho

Era abril de 1976. Esperávamos ansiosamente a estreia do filme "Tubarão" em Recife, sucesso de bilheteria há um ano. Mas naquela época, o famigerado peixe já fazia sucesso entre nós, que nadávamos atrás dos arrecifes na praia de Boa Viagem. Volta e meia assustávamos uns aos outros gritando: Tubarão! E, pelo sim, pelo não, procurávamos a barbatana do bicho deslizando na água. Depois de termos certeza de que tudo era uma brincadeira, continuávamos boiando tranquilos.


Eu tinha quase quatorze anos e havia visto um lindo menino na praia jogando frescobol. Depois disso, havia descoberto que ele era amigo do meu irmão. Estava apaixonada e tudo o que queria era conhecê-lo. A oportunidade havia surgido e havíamos combinado ir assistir ao filme mais comentado do ano.

Eu me arrumara com capricho: saia jeans, blusa vermelha, cabelos longos e escovados. Perfumada, olhos brilhando e feliz da vida! Tomamos o ônibus que, por possuir ar-condicionado, era chamado de "fresquinho". Rumo ao cinema Moderno, na Praça Joaquim Nabuco. A fila estava imensa. Me lembro de termos entrado uns agarrados aos outros, com medo de se perder na multidão e pulamos por cima das poltronas para evitar sermos esmagados. Éramos seis: Paulo André, Monique, Ana Maria, meu irmão, Rui e eu.


Meu coração estava acelerado tanto pela ida ao cinema em grupo, quanto pelo filme, quanto pela companhia ao meu lado esquerdo. Compráramos pipoca, chocolate e bombons. A luz do cinema apagou, o lanterninha ainda acomodava alguns atrasados, tinha gente nas escadarias, gente que encerrava a conversa, gente feliz!

Nas primeiras cenas do filme meu coração adolescente já estava apertado. Aquele tubarão branco nadando silenciosamente, a moça mergulhando à noite, minha respiração estava entrecortada de pavor. Nem me lembrava mais do meu herói lindo, loiro, alto e jovem ao meu lado. A tensão era enorme! 


Passados alguns minutos, senti que uma mão segurava a minha e o meu coração mudava o compasso da batida. Aquela sensação era desconhecida para mim. Pela primeira vez na vida eu segurava a mão de um menino e era o meu escolhido, o mais belo, o mais perfeito dos seres humanos.


Eu prestava atenção ao filme, mas não descuidava daquele prazer. Tão jovem e, por instantes, me sentindo tão mulher, tão dona de mim. Aí o tubarão surgiu novamente, que susto, virei o rosto para não ver aquela fera de olhos aterrorizantes. E meus olhos, mesmo no escuro, encontraram os dele. Meu primeiro beijo... Quanta ternura, inocência e carinho! E um pedido: "quer namorar comigo?" Sim, sim, sim. Eu estava amando. Meu primeiro amor estava acontecendo, meu primeiro beijo, meu primeiro encantamento!


Continuei assistindo ao filme segurando a mão do meu namorado. Eu tinha um namorado, meu primeiro namorado. Eu era uma garota feliz! Saí do cinema flutuando de felicidade. Os comentários sobre o filme eram ouvidos ao longe porque, naquele dia, os sinos dobravam por mim, anunciando uma nova etapa da minha vida.


Eu tinha conhecido o meu primeiro amor.


Ouça a música: http://letras.terra.com.br/rita-lee/66794/



domingo, 16 de outubro de 2011

Interior

"... me mande um pouco do verde que te cerca
Um pote de mel, meu coleiro cantor 
... me traga meu pé de laranja da terra
me traga também um pouco de chuva
com cheiro de terra molhada."
Rosinha de Valença


É assim que ela lembra. Os dias da infância eram passados entre o cheiro do mar e o cheiro da terra úmida das chuvas tão frequentes naquela região. Saudade.


Ela corria aqui e acolá procurando cachorrinho; sim, cachorrinho d'água era o nome que ela e seu irmão davam a um bichinho redondo, pequeno e marrom. O bichinho tinha duas patinhas e parecia indefeso, mas sabia cavar túneis embaixo da areia, e ela e o irmão gostavam de vê-lo em liberdade.


Hoje, sem o irmão, que teimou em deixá-la tão cedo(acho que está caçando cachorrinhos em outras paragens) somente lhe resta a nostalgia do cheiro da terra molhada que ainda continua igual ao da infância. Tomara que nesses tempos de preocupação em salvar o planeta, não inventem de criar em laboratório um cheiro parecido e decidam vendê-lo como se fosse similar, ou até mesmo único, singular. Porque não existe. 


Traz pra ela, maninho, o coleiro cantor e o pé de laranja da terra, aquele que ficava à beira do rio, no sítio do avô. Traz pra ela as recordações do vento no rosto, dos coqueirais do sertão, do barulho do açude transbordando.


Ela ainda espera.


Ouça a música: http://letras.terra.com.br/rosinha-de-valenca/724450/